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A sentença de Tiradentes e o inusitado perdão da Coroa Portuguesa aos dez dos onze condenados à mort


Depois de aproximadamente três anos de iniciado o processo criminal, onde se apurou o crime de lesa-majestade (traição contra o rei – previsto nas Ordenações Afonsinas e Filipinas), sobreveio o famigerado julgamento colegiado feito por desembargadores do então Tribunal localizado Rio de Janeiro que apenou parte dos réus subversivos à pena de morte (enforcamento e esquartejamento) e os demais réus ao exílio na África, além do confisco das propriedades e declaração de infâmia a eles e seus descendentes, aplicada a todos os réus.

Mais tarde, a S. Majestade, Maria I perdoou 10 dos 11 réus condenados à pena de morte. Segundo relatos históricos, a pena de morte de Tiradentes, a despeito da clemência dos demais, foi mantida para servir ao povo colonizado como demonstração efetiva do Poder da Coroa, um exemplo para aqueles que pretendessem se subtrair da sujeição, tivessem a ambição de se libertar das ordens da rainha, defender ideias abolicionistas ou de criar um Estado ou República independe. Na referida sentença, constam as expressões que eram utilizadas para descrever e valorar as ações tendentes a promoção da independência, no caso a mineira, asserções dirigidas aos réus que merecem nosso destaque: “animados de espírito da pérfida ambição” e “abomináveis intentos”. Esse modo de pensar parece-nos inconcebível no tempo atual, mas expressava a realidade daquela época, onde o principado tinha de ser mantido a qualquer custo – ainda que para isso fosse necessário acabar com algumas vidas de seus súditos – o que para a maioria transparecia aceitável, inclusive para a magistratura que trabalhava para a coroa, aplicando seus mandamentos inquestionáveis. Faziam da aspiração de liberdade um ato repugnante, egoísta e mesquinho, inerente apenas aos seres supremos colonizadores. Quem ler a sentença acima reproduzida poderá constatar a ausência de esforço argumentativo para se justificar que a morte, o esquartejamento e a exposição dos restos mortais espalhados por diversas cidades onde Tiradentes expôs suas ideias, seriam as penas absolutamente apropriadas e proporcionais para reprimir a infidelidade praticada ou ensaiada. A sentença exprimiu fielmente a vontade da lei vigente. Mesmo assim a execução da pena chocou não só a plebe, tendo ficado entalado na memória de todo povo brasileiro que fez reacender anos depois a história, tornando Tiradentes mártir da Inconfidência Mineira e símbolo embrionário da independência do Brasil, ocorrida décadas depois de sua morte. A misericórdia da rainha, que não fora estendida a Tiradentes e teria atingido, segundo dados históricos, somente os mais abastados envolvidos na conjuração, serviu de acalento ao povo que teve de assistir, no entanto, a demonstração mitigada da força do Império Português, que não poderia ser tão piedoso a ponto de justificar algum descrédito ou rebaixamento de sua reputação, capaz de lhe impingir a mancha de governança complacente e frágil, e, assim, incentivar, por afrouxamento, o surgimento de mais revolucionários. Tiradentes, infelizmente, serviu, no nosso modesto pensar, como uma espécie de bode expiatório, suportando a culpa sozinho diante do indulto conferido aos demais réus, decisão que se mostrou incongruente e tecnicamente inexplicável, pois não haveria razão para não estender a ele o perdão, a não ser pelas conveniências temporais de se ratificar a figura de quem é que manda (va), no caso, o reino de Portugal. Um dos recursos mais eficazes para controlar uma população: o medo e, via oblíqua, o silêncio.


Eis um pequeno trecho da Sentença proferida contra os Réus da Inconfidência Mineira:

Acordam em Relação os da Alçada etc. Vistos estes autos, que em observância das Reais ordens se fizeram sumários aos vinte e nove réus pronunciados, conteúdos na relação de folhas 14 verso, Devassas, perguntas, apensos e defesa alegada pelo Procurador que lhes foi nomeado etc. Mostra-se que na Capitania de Minas alguns vassalos da dita Senhora, animados de espírito da pérfida ambição, formaram um infame plano para se subtraírem da sujeição e obediência devida à mesma Senhora, pretendendo desmembrar e separar do Estado aquela Capitania, para formarem uma república independente, por meio de uma formal rebelião, da qual se erigiram em chefes e cabeças, seduzindo a uns para ajudarem e concorrerem para aquela pérfida ação, e comunicando a outros os seus atrozes e abomináveis intentos, em que todos guardavam maliciosamente o mais inviolável


[...] prova, que especificamente soubessem da conjuração e dos ajustes dos conjurados, mas que somente souberam das diligências públicas, e particulares, que fazia o réu Tiradentes, para induzir gente para o levante, e estabelecimento da república, pelas práticas gerais que com ele teve, ou pelos convites que lhes fez para entrarem na sublevação, suposto que não estejam em igual grau de malícia e culpa como os sobreditos réus, contudo a reserva de segredo de que usaram, sem embargo de reconhecerem, e deverem reconhecer a obrigação que tinham de delatar isso mesmo que sabiam, pela qualidade e importância do negócio, sempre faz um forte indício da sua pouca fidelidade, o que sempre é bastante para estes réus ao menos serem apartados daqueles lugares onde uma vez se fizeram suspeitosos, porque o sossego dos povos e conservação do Estado pedem todas as seguranças para que a suspeita do contágio da infidelidade de uns, não venha a comunicar-se e contaminar os mais.


Portanto condenam o réu Joaquim José da Silva Xavier, por alcunha o Tiradentes, alferes que foi do Regimento pago da Capitania de Minas, a que, com baraço e pregão seja conduzido pelas ruas públicas ao lugar da forca, e nela morra morte natural para sempre, e que depois de morto lhe seja cortada a cabeça e levada a Vila Rica, onde no lugar mais público dela, será pregada em um poste alto, até que o tempo a consuma, e o seu corpo será dividido em quatro quartos, e pregados em postes, pelo caminho de Minas, no sítio da Varginha e das Cebolas, onde o réu teve as suas infames práticas, e os mais nos sítios das maiores povoações, até que o tempo também os consuma, declaram o réu infame, e seus filhos e netos tendo-os, e os seus bens aplicam para o Fisco e Câmara Real, e a casa em que vivia em Vila Rica será arrasada e salgada, para que nunca mais no chão se edifique, e não sendo própria será avaliada e paga a seu dono pelos bens confiscados, e mesmo chão se levantará um padrão pelo qual se conserve em memória a infâmia deste abominável réu; [...]

Vale ressaltar que a justiça nesse período era distributiva (a posição social determinava os procedimentos). A igualdade jurídica nasce na Revolução Francesa e chega em Portugal com o Constitucionalismo no século XIX.


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