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Agora até a cobra vai fumar... A invasão das tabacarias modernas no cenário nacional.


Como se sabe, desde sempre, os povos e as culturas são miscigenadas com maior ou menor intensidade e velocidade. No passado, se davam por meio de bárbaras conquistas territoriais ou da colonização de uns por outros, sob a bandeira dos sedizentes descobrimentos de terras supostamente perdidas.

Na atualidade, as influências se dão através de meios bem mais fluídos, subliminares, imperceptíveis e quase instantâneos, em razão do acesso massificado à informação sem fronteiras, provocada pela era digital e consequente invasão da internet nas mais variadas sociedades, que propiciou a conexão direta dos polos do mundo e dos povos mais remotos.

Devido a isso, de tempos em tempos, fortes ondas de hábitos culturais têm se aproximado do nosso continente, e muitas se perpetuado. Inseridas de maneira tão natural e paulatina que passam a ser confundidas como se fosse uma criação original. A exemplo disso, podemos mencionar as festas coloridas onde todos ficam com as ‘caras pintadas’ por um pó de muitas cores, evento que tem se proliferado pelo Brasil mas, em sua origem, se trata de uma tradicional celebração da cultura indiana para comemorar a chegada da primavera.

Igualmente, nos quatro cantos do país experimenta-se agora a nacionalização de uma tradição do mundo árabe para reunir fraternos em momentos de deleite, adaptada em um novo modelo de negócio: os chamados lounges para uso do nargileh ou nārgila, uma espécie “cachimbo d’água” para tirar as impurezas do tabaco, usados com essências aromáticas.

Os ambientes são exclusivamente destinados aos apreciadores desses produtos fumígenos, naturalmente insertos na classificação das , que fazem parte do rol de estabelecimentos que excepcionam a normatização proibitiva de convívio dos com os em bares e restaurantes convencionais. A atividade empresarial tem se proliferado ao longo desses últimos anos de maneira significativa, gerando renda e empregos no setor. Apesar disso, os diversos empreendedores, responsáveis pela retomada econômica do país, têm vivenciado alguns percalços decorrentes do lacunoso regramento das tabacarias diante das leis antifumo.

Isto é, as referidas legislações desprezaram, ao seu tempo de edição, a necessidade de regulamentar adequada e pormenorizadamente as tabacarias, inserindo-as tão somente na exceção da regra, e, desse modo, permitindo interpretações enviesadas pela Administração Pública, que têm exercido seu poder de polícia erroneamente com a atuação dos estabelecimentos por descumprimento da lei, pois estariam eles em suposto descompasso com essas leis antifumo, quando, na verdade, se tratam de locais exclusivamente destinados ao consumo desses produtos, não havendo qualquer norma genérica ou especial que impusesse dever de sujeitar os frequentadores ao relento caso queiram desfrutar com seus pares gostos idênticos. Ou, quando admitidos os ambientes cobertos e aconchegantes, paradoxalmente, inadmitem o consumo de bebidas e alimentos de forma concomitante, alegando inarticuladamente que seria incompatível o consumo de ambos.

Ao que parece, trata-se de efeito decorrente da impregnação da concepção de um novo mundo ideal e utópico que a lei limitadora pretende incutir, fruto de uma geração que busca encontrar e nomear vilões, a fim de erradicar o mal e as doenças decorrentes do consumo voluptuoso de substancias nocivas, como o , como ilustra o Jusfilósofo Prof. Doutor em entrevista dada à Revista Época[1].

Como se pode inferir do trabalho realizado pelo insuperável mestre, a legislação em vigor violou por omissão e regulamentação deficitária, direitos fundamentais das pessoas, notadamente as liberdades individuais e a isonomia. Melhor dizendo, se de um lado pretendia preservar o , inicialmente segregando o , e, num segundo momento, transferindo o dever de fiscalização aos estabelecimentos com uma obrigação de não-fazer, deixou de emprestar com respeito equivalente aos seus desejos individuais.

Vale dizer, ao dispor sobre os estabelecimentos exclusivos para o consumo de fumígenos, aquelas obrigações (de não-fazer) contaminaram, , as tabacarias, sem lhes servirem, por razões óbvias. De outra forma, a má-formação da lei ordinária e das municipais, com uma redação deficiente nesse ponto em particular, está oportunizando que a Administração Pública adote posturas sem fundamento legal apropriado, em evidente equívoco. A título de esclarecimento, num caso recente e emblemático, a Administração local promoveu o disparate de impor que o estabelecimento se desfizesse dos sofás instalados no local, nitidamente com um viés apequenado de retaliação desmedulada, somente para punir o fumante, como se sua escolha pessoal lhe fizesse menos ser humano.

Através de uma interpretação meramente literal das leis, não se pode precisar se as tabacarias deveriam ser erguidas com espaços a céu aberto, dada a omissão regulatória. Ou se, conveniente e confortavelmente, com ambientes cerrados, evidentemente com a instalação de equipamentos para a exaustão necessária e troca de ares/gases do local de experimentação dos tabacos com essências aromáticas.

Não se sabe também precisar, por ausência de disposição legal, se, nesses ambientes, poder-se-iam ser comercializadas e consumidas bebidas e alimentos, apesar da obviedade inescusável acerca da indispensabilidade desses itens de consumo com o fim de propiciar completude aos momentos de tertúlia que, talvez para o espanto de alguns, não são legalmente vedados a nenhuma pessoa, seja ela fumante ou não.

Não restaram claras, ao que parece, essas questões na enfocada legislação, especialmente diante dos recentes atos da Administração, que ameaçam reiteradamente a iniciativa privada, com o fechamento dos estabelecimentos comerciais, de maneira despropositada, ilegítima e ilegal, decorrente de uma má compreensão da própria legislação que julgam interpretar. Por não a compreenderem, não percebem que a lei não se conhece apenas pela sua letra, mas necessariamente de acordo com o todo normativo em que essa se insere, o que inclui alguns princípios e garantias constitucionais que, aparentemente, estão sendo negligenciados.

O direito de escolha: o bem-estar, a igualdade e a liberdade individual. 2. O Livre exercício da atividade econômica.

Nossa tarefa, nesse ponto, é de rememoração, pois todas as questões são quid iuris. Os bens juridicamente tutelados e que carecem de regulamentação decorrem desse tripé, acima intitulado, e da confluência desses preceitos fundamentais.

Não se imagina mais em tempos modernos uma sociedade democrática que se distancie dessas garantias. Somente em repelidas sociedades tiranas é que o homem, e seus ínsitos direitos, está relegado ao segundo plano.

Desta forma, privilegiamo-nos com um arcabouço jurídico completo, que não permite-nos ser displicentes diante do malferimento de quaisquer garantias, in casu, nomeadamente vitais ao sistema.

A primeira delas, a liberdade de escolha. Não só a liberdade física é uma garantia suprema, mas também toda aquela relacionada às decisões pessoais que não interfiram no direito alheio.

Escolher entre beber água ou refrigerante, ser vegetariano ou carnívoro, ser sedentário ou atleta, ser homossexual ou heterossexual, beber vinho ou ser abstêmio, comprar uma casa ou um apartamento. A dualidade imprevisível faz da vida um fenômeno agradável. É certo que muitos desses dilemas angustiam os seres humanos, mas nem por isso devem ser direcionados pelo Estado Democrático De Direito, pois isso é próprio e exclusivo dos Regimes Totalitários, a exemplo da Coreia do Norte, onde o Governo decide até mesmo o que o povo deve ouvir, assistir e ler.

Todas essas decisões fazem parte das escolhas diárias, compõem os caminhos da própria existência e são determinantes à própria felicidade. Embora possa parecer elementar e irrefutável a primeira análise, esse direito tem se mostrado atacável e vilipendiado reiteradamente por comportamentos sociais preconceituosos, disfarçadamente.

Na tentativa inócua de deflagrar uma campanha pró-saúde, com a eliminação de ambientes destinados com consumo do tabaco, a Administração está, sem se dar conta, incitando preconceito ao se opor declaradamente aos fumantes, como se tivesse no exercício legal de um direito de incutir valores a outrem.

Esse comportamento atenta, visivelmente, contra as liberdades individuais.

O Estado Democrático de Direito da República Federativa do Brasil não está, definitivamente, por cláusula pétrea, autorizado a intervir nessas searas, tampouco pretextando a saúde pública.

Ainda mais com pensamentos utilitaristas estatais com métricas, números, planilhas ou outros dados gráficos, sua defesa está vedada em absoluto contra os direitos fundamentais.

Nenhum cotejo desses direitos seria saudável, especialmente diante dos resultados catastróficos que poderiam advir, com o potencial retrocesso de parte das consagradas garantias conquistadas pela Assembleia Nacional Constituinte de 1988.

Noutra ponta dessa discussão, está o direito ao bem-estar. Não é aceitável que, admitindo-se o direito de escolha do fumante, deveria ele ser tratado com avesso, aversão, antipatia, ódio, repugnância, e, por isso, teria de estar no desaconchego, sem sofá e à céu aberto.

É quase o mesmo dilema enfrentado pelo Estado a respeito das prisões brasileiras, onde a dignidade humana está sendo mitigada, relativizada e secundarizada pela ideia aparentemente aceitável de ter de pagar a pena, da ideia do fez por merecer. A superlotação deixou de ser um problema a ser resolvido com prioridade, e está sendo sublimada depois de alçada ao patamar de estática sem solução, sobretudo após a genial alternativa de transformar os carros oficiais nos mais novos anexos das cadeias públicas.

Como se sabe, esse nível de tolerância anárquica do Estado é deveras perigosa e tende a impor ao Judiciário a obrigação de socorrer temas como o presente, diante da ineficiência estatal para solucionar problemas mínimos de gestão, atualmente dedicada com exclusividade aos temas de maior urgência como conter os gastos.

Frente ao conflito de direitos e garantias individuais não há tolerância salutar, há esmorecimento irresponsável. Não se pode curvar ou desleixar a ponto de colocar em jogo todas as conquistas seculares, alcançadas com muito sangue derramado de nossos compatriotas e familiares na ditadura, que a história e a memória jamais permitirá esquecer.

Desta forma, não há como se permitir que o bem-estar também seja relegado, senão daqui a pouco estaremos mendigando direitos mínimos novamente.

Por fim, a última garantia, o livre exercício da atividade empresarial e econômica[2]. Tarefa das mais árduas em solo brasileiro, com impostos violentos, com mão de obra desqualificada, leis trabalhistas protecionistas demasiadamente (recentemente revistas) e uma dezena de outros obstáculos e intempéries, o empresário resiste ao improvável.

País que não se abate como outros, não perde a esperança, aposta na renovação. Nasce, cresce, quebra, cai, ressurge. Um ciclo instável e estafante que produz mais enfermidades que o próprio tabaco, a bebida, a gordura trans e o colesterol juntos.

O empresariado, no cenário nacional, tem pago a conta, seja no setor do agronegócio, na indústria ou nos serviços. E, contrapartida, não tem encontrado um Estado parceiro, menos burocrático, pelo contrário, criador de óbices e ‘torturas’, como se narrou acima.

A atividade sob comento não encontra qualquer vedação no tecido jurídico nacional, apesar da sua ‘antipática’ atuação, que se contrapõe ao politicamente correto, ao saudável e à vida eterna.

Não há nenhuma razão para se inviabilizar a atividade, que resta autorizada, porém, sem regulamentação específica dificultando exponencialmente o seu exercício e das garantias individuais, o que justifica o manejo da presente via iuris, por omissão regulatória e reflexa inconstitucionalidade, a fim de injungir a atividade com diretrizes adequadas e respeito às garantias nesta defendidas.

Aliás, cumpre aqui reforçar que não se trata de equivocidade do texto ou ambiguidades, mas de verdadeira omissão da norma, no nosso sentir, que quando de sua promulgação não havia razão para parametrizar a atividade recém introduzida no seio nacional.

O que haviam eram as tabacarias tradicionais de venda de produto e não de experimentação, com ambientes especiais com exaustão, onde se comercializam as essências e não os instrumentos, no caso, os nargileh ou nārgila, que são cedidos pelo espaço.

Isso nos conduziria a reflexão típico do ‘problema da abrangência’ inerente às normas de sentido biunívoco, onde “não se sabe se a norma é aplicável somente às hipóteses de suporte fático expressamente nela previstas ou se sua aplicação se estende a situações semelhantes, ou seja, se o texto é taxativo ou exemplificativo.[3]”

Estaríamos diante da norma genérica? Parece-nos que não, diante dos calamitosos episódios suso mencionados que a exegese e a hermenêutica não têm socorrido.




[1] http://www.terciosampaioferrazjr.com.br/?q=/publicacoes-cientificas/128


[2] Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.


[3] OTÁVIO VERDI MOTTA, in JUSTIFICAÇÃO DA DECISÃO JUDICIAL, RT, p. 75.


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